domingo, 16 de maio de 2010

Política Social do Governo FHC

Herança FHC:
dúvidas na economia
e conquistas no social


Muitos observadores – brasileiros, todos – se espantaram quando o presidente Fernando Henrique Cardoso foi escolhido pela ONU como a autoridade mundial que mais se destacou ao longo deste ano no campo do desenvolvimento humano. Como o prêmio das Nações Unidas foi criado em 2002, FHC é o primeiro líder a merecer a honraria. A cerimônia de entrega do prêmio ocorreu na semana passada, em Nova York. Até mesmo entre os críticos mais ácidos de FHC há certo consenso de que o governo tucano realizou um trabalho respeitável no campo econômico. As opiniões em torno dos avanços sociais de sua gestão, no entanto, não são tão favoráveis. Mais do que isso, difundiu-se uma relação de causa e efeito envolvendo as duas responsabilidades governamentais. FHC teria se dedicado demais à economia, razão pela qual descuidou do chamado "lado social". Por esse motivo, o prêmio da semana passada produziu certo espanto. Quer dizer, então, que FHC fez algo notável pelo social? Ou a ONU se teria deixado confundir?
Nos oito anos da gestão FHC, o Brasil conheceu a estabilidade econômica e viu morrer o mais perverso dos mecanismos de destruição de renda: o imposto inflacionário. Também foi nesse período que o país aprendeu que privatização não se resume a uma troca de controle acionário nas empresas do governo. As estatais davam prejuízo, recolhiam pouco imposto, serviam de cabide de emprego e se tornaram um foco de corrupção. Para o Tesouro nacional, a venda das companhias rendeu, de imediato, 250 bilhões de reais, pagos em dinheiro, mais um ganho adicional indireto ao longo do tempo. Tome-se o caso das telefônicas, vendidas em 1998. Na fase do sistema Telebrás, havia no Brasil 22 milhões de telefones fixos em operação, e algumas linhas chegavam a custar 5 000 dólares. Agora, são 50 milhões de telefones fixos e 30 milhões de celulares. Detalhe: a instalação de uma linha fixa custa apenas 70 reais. Mais do que isso, as companhias privadas, e não o Estado, encarregaram-se de fazer os investimentos necessários à expansão dos serviços. Sobrou mais dinheiro para aplicar em educação, saúde, saneamento básico. Podem ainda ser contabilizados como outros feitos econômicos significativos destes últimos oito anos a Lei de Responsabilidade Fiscal, a noção de que governo sério deve cortar gastos para honrar dívidas, o saneamento dos bancos estaduais e o Proer, que de uma só vez protegeu os aplicadores com dinheiro em bancos mal administrados e puniu exemplarmente os banqueiros responsáveis pelo rombo. Embora o governo tenha evitado enfrentar até o fim algumas brigas importantes, como a reforma política, a tributária e a previdenciária, o debate ganhou outra roupagem ao término dos oito anos de FHC. Observe-se o que aconteceu na campanha eleitoral. Tanto nas eleições estaduais quanto na sucessão presidencial, os candidatos disputaram para ver quem era mais responsável com o orçamento, quem iria cortar os gastos da melhor forma. No caso da disputa ao Palácio do Planalto, até o PT se viu constrangido a dizer que vai dar seqüência ao programa proposto pelo governo que sai. A primeira briga do próximo governo, avisa Lula, é a reforma da Previdência. Essa dedicação aos temas econômicos criou em torno de Fernando Henrique a tal marca anti-social que a concessão do prêmio ajuda a desfazer. No apagar das luzes da gestão tucana, o Brasil pode estar testemunhando uma mudança conceitual. Por um lado, algumas das conquistas econômicas registradas nos últimos anos começaram a dar sinais de fadiga e necessitam de vigilância redobrada. A inflação anual vai fechar 2002 na casa dos dois dígitos, o dólar beira os 4 reais, a dívida pública ultrapassou a perigosa marca dos 50% do PIB e o país está estacionado num patamar medíocre de crescimento econômico. Por outro lado, os números mais recentes ligados às ações sociais federais apontam para um trabalho de primeira grandeza. Em seu governo, FHC dobrou o gasto em programas de assistência social, de uma média anual de 15 bilhões até 1994 para 30 bilhões de reais em 2002. O aumento produziu um efeito que pode ser conferido em várias áreas. Na educação, em que se elevou o número de crianças na escola, na saúde, na qual a mortalidade infantil caiu significativamente, na distribuição de crédito a microempreendedores. Em alguns casos, o governo atingiu marcas impressionantes. Em oito anos, o Ministério da Reforma Agrária assentou três vezes mais famílias do que havia sido feito em trinta anos. Além de investir muito mais na área social, passou-se a gastar melhor. Dados referentes a 1994 mostram que, de cada 10 reais reservados aos gastos sociais, 5 iam para a população carente. Hoje, 9 de cada 10 reais vão parar no lugar certo. "O dinheiro não chegava na ponta porque não havia controle de nada, as coisas nesse campo eram uma bagunça", diz a primeira-dama Ruth Cardoso, presidente do programa Comunidade Solidária, com larga experiência na área social. O ganho de eficiência teve dois motores principais. Um deles foi a queda brutal da inflação. O preço dos alimentos passou a subir num ritmo mais lento, o que beneficia diretamente as camadas mais pobres da sociedade. Um levantamento da Fundação Getúlio Vargas mostra que o fim da inflação provocou um aumento no poder de compra dos mais pobres da ordem de 9%. O efeito de longo prazo pode ser medido por outro indicador. A pobreza brasileira, que atingia 42% da população, caiu para 34%. Em números absolutos, quer dizer que aproximadamente 10 milhões de pessoas ultrapassaram a linha da pobreza. O segundo motor em prol da eficiência foi um pedacinho de plástico, o tal cartão magnético bancário que dá acesso à rede de benefícios do governo federal. Com ele, enxuga-se a burocracia, evitam-se desvios e o dinheiro de cada cidadão fica disponível todo mês no banco, sem intermediação política. Nos Estados Unidos, só agora o governo decidiu introduzir o modelo dos cartões. Técnicos da ONU estão levando o modelo para a África do Sul. O sistema, que já distribuiu 10 milhões de cartões, funciona à base de um cadastro informatizado que centraliza os dados dos beneficiários do conjunto de programas federais. O acesso a ele permite saber tudo sobre uma família: a renda, o número de filhos e quantos benefícios recebe. O Brasil é um país contaminado por uma forte cultura assistencialista, segundo a qual bons programas sociais são aqueles que atenuam as necessidades dos mais pobres de forma direta, dando comida a quem tem fome, cobertor a quem tem frio e remédio aos doentes. Por essa razão, governantes mais populistas, que distribuem comida, cupons de alimentação e leite, acabam construindo uma imagem pública mais positiva do que aquele que simplesmente deposita o dinheiro dos pobres no banco. Muitos políticos têm saudade da extinta Legião Brasileira de Assistência, que distribuía cestas básicas e dava a eles a oportunidade de se apropriar e de apadrinhar o benefício – quando não se apoderar pessoalmente da doação. O que há de novo nesse campo, e o governo tucano teve papel fundamental na mudança, é a idéia de que a pobreza precisa ser combatida com a geração de renda, não simplesmente amparada. O exemplo mais concreto do que se fez nessa direção é a implantação do programa Bolsa-Escola, em 2001, um benefício em dinheiro de até 45 reais por família para os pais cujas crianças forem matriculadas na escola. O programa, tocado pelo Ministério da Educação, consome um orçamento anual de 2 bilhões de reais, alcançando atualmente 9 milhões de crianças. Os feitos do governo Fernando Henrique não transformaram o Brasil num país rico nem modificaram a injusta distribuição de renda do país, que é uma das piores do mundo. Os jovens brasileiros têm a pior escolaridade da América Latina, em empate técnico com Guatemala, Honduras e Nicarágua. Apenas quatro de cada dez jovens com idade para cursar o ensino médio estão matriculados. Os números absolutos mostram que o cenário está longe do ideal. Para que as pessoas consigam notar a diferença será preciso trabalhar – e certo – durante vinte anos, segundo os mais otimistas. A contribuição de Fernando Henrique ao debate, nesse caso, é que ele definiu o rumo a seguir. Cabe ao governo que entra escolher a velocidade da travessia. No caso da educação, apesar do atraso comparativo, nenhum outro país da América Latina avançou tanto no mesmo período. Em 1994, 88% das crianças estudavam. Agora são 97%. Os ganhos sociais do governo FHC ficaram comprometidos por alguns indicadores ruins. Um deles é o desemprego, que cresceu nos últimos anos e atingiu as taxas mais altas da história. Na década de 80, os desempregados equivaliam a 5% da força de trabalho. Hoje, a taxa quase dobrou. Está em 9,4%. No mundo inteiro há uma tendência à diminuição de postos de trabalho, como resultado do ganho de eficiência na produção. No Brasil acontece o mesmo, mas, por trás da explosão no índice, está o baixo crescimento econômico. O desemprego só cairá se o Brasil voltar a crescer. O crescimento só virá se os juros caírem. E os juros só cairão se o governo cortar seus gastos, aumentando o superávit primário. Como se vê, quanto mais o presidente Lula se preocupar com as questões econômicas, mais ele estará fazendo pelo social.

Fonte: http://veja.abril.com.br/181202/p_112.html

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